Na cama com o Demónio
• Parte 3 •
Segunda-feira. Um manto azul escuro, abate-se sobre Lisboa. Acabei de sair do trabalho. São oito e quarenta e cinco e o frenesim da cidade parece não dar indícios de querer abrandar. Subo a Ressano Garcia e procuro, por entre filas intermináveis de automóveis, um táxi que me leve até Santos. A noite está quente, perfeita para levar a minha Norton a passear, mas como não sei em que estado vou estar daqui a umas horas, optei por deixá-la à porta do escritório. "Depois passo por lá para a ir buscar". Ao longe, consigo avistar um táxi que que vem da Ramalho Ortigão. Está livre.
Solto um assobio acompanhado de um aceno, e logo um Mercedes E200 creme, a cair de podre, pára do lado de lá da estrada. Acho que não gostou que o tivesse chamado como se chamam os cães, percebo isso no momento em entro naquela carroça e dou de caras com a tromba de porco com que me olha. Sento-me no banco de trás e puxo a porta, que solta um gemido ferrugento ao fechar.
- Boa noite - diz ele.
- Boa tarde - digo eu só para contrariar -, é para a Infante Santo por favor - ordeno ao taxista sebento com ar de poucos amigos. Liga o taxímetro e cobra-me dois euros antes mesmo de engrenar a primeira. Apático e prisioneiro dos meus pensamentos, olho com indiferença a paisagem que se reflecte na janela do carro; tento, num esforço doloroso, lembrar-me das feições da mulher que na noite de Sábado, tentou atenuar o vazio que insiste preencher a minha vida. Apesar do esforço, a minha memória não me devolve nada; o mais ténue risco de semblante; o mais estilizado dos perfis; a mais volátil das feições que fosse. Um imenso mar de nada é tudo o que me dá. “Como é possível não me lembrar da sua face?” pensei, desapontado comigo mesmo. Apenas o doce perfume da sua pele se me recorta na mente, “O cheiro dos nossos linguados entranhado no corpo”, recordei numa ponta de desejo. Puro fogo, onde arde um desejo carnal sem rosto. Não permitiria a mim mesmo sentir outro sentimento que não esse. “Recuso amar outra vez”. Finalmente, e sem dar por isso, chego à porta do nº 5.
- São oito euros e trinta e cinco cêntimos - reclamou o velho engelhado, com cabelos cor de cinza, o seu quinhão do vil metal. Puxei de uma nota de 10 e estendi-lha.
- Fique com o troco - disse-lhe, com um sorriso de gozo nos lábios. - É pela simpatia. O taxista, acelerou a fundo e desapareceu numa pressa. Afasto o punho da camisa que me tapa o relógio e vejo as horas. “Nove e vinte. Devia ter ligado” penso, já com o dedo na campainha do 3º esquerdo. Toco e fico a aguardar. O trinco da porta dispara num grito eléctrico. Entro no hall do prédio e carrego no botão de chamada do elevador. Naquele compasso de espera, desejo ter no meu cérebro um mecanismo semelhante, "Um grande botão vermelho que pudesse carregar a meu bel-prazer - On/Off -, a vida seria tão mais simples”. As portas de aço abrem-se e, ao entrar no cubículo revestido a madeira, dou de caras com o meu olhar. O grande espelho que preenche a face frontal do ascensor devolve-me o meu reflexo, mas viro-lhe as costas com desprezível indiferença. Pressinto, no entanto, o juízo com que me observa por cima dos ombros e logo mordo entre dentes um seco “Estás a olhar para onde? Não falo com estranhos.” No curto percurso que me separa do terceiro andar, tento sem sucesso lembrar-me do rosto de Sílvia. Nada. Apenas o seu perfume sensual rodopia na minha mente confusa. Chego finalmente à porta do apartamento. Relutante e sem uma memória à qual me possa agarrar, pouso ao de leve o dedo indicador sobre o interruptor da campainha e fecho os olhos, encerrando-os nas ruas escuras da memória, onde penso ser possível, por vezes, tropeçar na intuição. “Não adianta” pensei resignado ao deixar descair a cabeça para a frente, como um peso morto que tomba sem vontade. Reforço a coragem com um “Que se foda, sem medos” que solto dentro de mim como um incentivo doentio.