Na cama com o Demónio
• Parte 2 •
Encostado à ombreira da porta, detém-se por breves instantes e sonda a penumbra em busca das memórias da noite anterior.
O lençol de luar que entra pela janela do pequeno quarto contíguo, revela, num crescendo demorado, formas esbatidas que mal se deixam perceber; reconhece o tapete de pêlo comprido que quase o atirou ao chão e o quadro de Klimt. Tudo o resto, não é mais que um denso nevoeiro impossível de contornar. Não tem memória de mais nada. “Tal não era a tua sede de carne” conclui com sarcasmo. Avança dois passos para fora do quarto, alcança o interruptor e liga-o. A lâmpada do tecto acende-se num grito estridente que apanha James desprevenido. “Filha da p…” grita em surdina ao virar a cara e erguer a mão direita na tentativa de filtrar o jorro de luz aguda. De olhos cerrados, segue às apalpadelas para a casa de banho, onde alcança por fim, o que pensa ser a extremidade do lavatório; agarra-o com as duas mãos e abre lentamente os olhos ainda doridos. O grande espelho que repousa na parede, devolve-lhe o seu olhar num reflexo baço; James renuncia ao confronto consigo próprio e segue para a banheira; abre a torneira e deixa a água correr por uns segundos. Sem vontade, entra na banheira. O contacto com a água desperta-lhe o corpo num arrepio dilacerante; sente uma corrente de sensações desconexas fragmentar-lhe o raciocínio, toldado por grotescos clarões de puro desejo sexual: a carne quente; o deboche húmido e o doce toque da pele de Sílvia. O duche frio arrefece-lhe as entranhas e as lembranças, começam por fim a reclamar o seu lugar numa cronologia verosímil. De início, tudo se resume a rios de whisky que correm desenfreadamente para o mar dos acontecimentos de Sábado - a noite em que se conheceram. “Passei a noite toda a beber da sua boca” relembra ao colocar a nuca por debaixo do chuveiro. “Sem dúvida o melhor copo de onde alguma vez já bebi”. As memórias dessa noite, fluem livremente sem que consiga oferecer-lhes resistência: lembra-se de trocarem números de telefone à porta do Gasoil; de sentir as elegantes mãos de Sílvia acariciarem-lhe o peito; de a beijar intensamente enquanto subiam a Rua da Madalena; de a deixar dentro de um táxi; de seguir a pé para casa, num passo trôpego e dormente - efeito das doses exageradas de álcool com que regaram a noite -; de cair na cama como uma pedra; de ter dormido todo vestido, enroscado à inconsciência, aquela doce dormência que sempre abraça os desgraçados e os embala num sono torpe. Por um momento, deixa-se ficar ali, de pé, num transe catártico, debaixo da água que cai. Observa as gotas recortarem-lhe o corpo sob a forma de pequenos riachos e, num silêncio ensurdecedor de memórias cruéis feito, pressente uma mágoa pousar-lhe no peito. Uma sujidade escura e tenebrosa que água nenhuma consegue lavar; uma treva pegajosa e lúgubre, que insiste manter-se sombra e luz nenhuma consegue iluminar. Observa o seu corpo nu e sente-se imundo. “Todo eu sou falsidade”, reflecte com repugnância, “tornei-me na máscara que eu próprio criei para me proteger do Mundo e perdi por completo a noção daquilo que sou; daquilo que fui; sem vontade absolutamente nenhuma de viver o que poderá vir a ser. Só o fim me interessa. O grande sono”.
Visualiza sob a forma de rasgos de luz brilhante, os acontecimentos que tornaram possível a sua presença naquela casa; naquele ponto específico da sua vida. James, segue viagem.