terça-feira, 25 de janeiro de 2011

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Na cama com o Demónio
Parte 4



Enterro o indicador na campainha e ouço, do interior do apartamento, uma voz pedir-me “dois segundos”. Um minuto depois, o trinco da porta solta-se com três voltas barulhentas. Sílvia, enrolada numa toalha carmesim, abre a porta.
“Finalmente, o corpo da memória perdida” penso, enquanto apanho o queixo do chão e procuro nas gavetas do meu léxico, uma simples interjeição que seja. O seu cabelo ruivo, ainda molhado, brilha sob as luzes do hall de entrada; não ouço o som das palavras, mas acompanho todos os movimentos que os seus lábios desenham, ao articular o “olá, estás bem?” que espalha pelo ar. Rendido à sua sensualidade, solto um monossilábico “sim”. De passo firme, entro no apartamento; trocamos um intenso e indeciso jogo de olhares; Sílvia oferece-me a face, mas eu, irredutível, procuro-lhe a boca. Lentamente, avanço o decidido beijo que deixo cair ao de leve nos seus lábios; sinto o seu hálito quente atiçar-me o desejo. Fecha a porta da rua e de costas voltadas para mim diz-me que está cansada, enquanto se encaminha para a sala. Sigo-a com o meu olhar deleitando-me com cada movimento do seu corpo.
- Tomei um banho e vim deitar-me aqui no sofá. Tive um dia para esquecer - desabafa num suspiro, ao ajeitar o nó da toalha que ameaça desfazer-se.
- Sim já tinhas dito ao telefone. Queres falar sobre isso? - pergunto sem grande interesse de olhos fixos na sua coxa destapada.
- Não, hoje não. Já jantaste?
- Bebi dois Martinis depois de ter saído do escritório - confidencio, sem receio do que pense, enquanto dispo o casaco e puxo uma cadeira; por cima da mesa de vidro deixo cair o telemóvel, o Marlboro e a caixa de Club Masters.
- Então estás mal. Só tenho meia garrafa de vinho. Casa de Santar.
- Perfeito - sorri, ao ouvir a palavra «vinho».
- Tens a certeza que não queres que te faça qualquer coisa rápida? - insiste.
- Não obrigado, eu estou bem. Só preciso que me digas onde estão os copos.
- No armário por cima do fogão; a garrafa está ali - diz-me, ao apontar num movimento esforçado para uma pequena mesa que se encontra no canto da sala.
- Sim, eu já a vi.
“Eu só vejo o que me interessa” penso para comigo. Vou à cozinha num pé e volto noutro; sirvo-me e emborco o primeiro de muitos. Sem pestanejar, despejo um atrás do outro até não restar uma gota. O vinho durou um riscar de fósforo; “só estou contente quando já não há nada, quando chega ao fim. Não sei porquê, mas é assim” reflecti, ao ver o último fio escarlate escorrer do interior do copo directamente prá goela. Satisfeito com a calma interior que me adormece o cérebro, abro a caixa das cigarrilhas mas, descontente com o cenário, fecho-a logo de seguida e puxo de um cigarro. “A última Master é para mais logo, fumo-a em paz enquanto a Norton aquece as tripas”. Acendo o Marlboro, dou duas puxadas sôfregas e solto uma espessa bafurada de fumo pelo ar.
- Não te importas que fume pois não? - pergunto, ao guardar a carteira de Quinas no bolso.
- Não, mas abre a janela e sobe os estores até cima.
Enquanto reponho os níveis de nicotina no sangue - que se querem sempre altos - o meu telefone, inesperadamente, toca; admirado, olho para o visor que me mostra o nome de Alexandra. “Tu? O que é que tu queres a esta hora?”. O meu sobrolho franzido de espanto denuncia o meu jogo; Sílvia, percebe que é uma mulher e observa-me em silêncio a estudar a minha recação. Eu, frio como mármore, testo as águas sem desviar o olhar; rejeito a chamada e desligo o telefone.
- É trabalho, não interessa.
- Eu não te perguntei nada. Se não atendes é porque não queres.
“Minha querida, muito me dizes. Não vacilas diante da boca do lobo? Isto promete”, mordi entre dentes ao atirar o caramelo incandescente pela janela. Volto para o meu lugar e chego a cadeira para perto do sofá; conversamos sobre o ontem que precedeu a noite em que nos conhecemos.
- Como foi o meu Domingo? - respondo com a pergunta - Passei o dia a dormir. Apenas saí à noite para beber um café e dar uma volta de mota. Fui até à Boca do Inferno arejar as ideias. Terminada a minha agenda cultural, foi a vez dela falar do seu, bem mais fecundo em banalidades do quotidiano: o almoço com os avós paternos; a visita a casa da mãe e o passeio no jardim da Gulbenkian, com as amigas, que culminou com um lanchinho todo pipoca na pastelaria Mexicana - na Avenida Guerra Junqueiro - onde comeram scones e beberam uma infusãozinha de cidreira toda ela elegante, servida cheia de nove horas em serviços de porcelana chique. Ouvi-a sem interromper, sem atenção e sem o mínimo de interesse por todo aquele mundo de querubins da Lapa imaculados e detestáveis. O que eu queria mesmo, estava debaixo daquela toalha carmesim. “Isso sim, é delicioso e delicado” pensei, ao cerrar os dentes.


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

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Na cama com o Demónio
Parte 3



Segunda-feira. Um manto azul escuro, abate-se sobre Lisboa. Acabei de sair do trabalho. São oito e quarenta e cinco e o frenesim da cidade parece não dar indícios de querer abrandar. Subo a Ressano Garcia e procuro, por entre filas intermináveis de automóveis, um táxi que me leve até Santos. A noite está quente, perfeita para levar a minha Norton a passear, mas como não sei em que estado vou estar daqui a umas horas, optei por deixá-la à porta do escritório. "Depois passo por lá para a ir buscar". Ao longe, consigo avistar um táxi que que vem da Ramalho Ortigão. Está livre.
Solto um assobio acompanhado de um aceno, e logo um Mercedes E200 creme, a cair de podre, pára do lado de lá da estrada. Acho que não gostou que o tivesse chamado como se chamam os cães, percebo isso no momento em entro naquela carroça e dou de caras com a tromba de porco com que me olha. Sento-me no banco de trás e puxo a porta, que solta um gemido ferrugento ao fechar.
- Boa noite - diz ele.
- Boa tarde - digo eu só para contrariar -, é para a Infante Santo por favor - ordeno ao taxista sebento com ar de poucos amigos. Liga o taxímetro e cobra-me dois euros antes mesmo de engrenar a primeira. Apático e prisioneiro dos meus pensamentos, olho com indiferença a paisagem que se reflecte na janela do carro; tento, num esforço doloroso, lembrar-me das feições da mulher que na noite de Sábado, tentou atenuar o vazio que insiste preencher a minha vida. Apesar do esforço, a minha memória não me devolve nada; o mais ténue risco de semblante; o mais estilizado dos perfis; a mais volátil das feições que fosse. Um imenso mar de nada é tudo o que me dá. “Como é possível não me lembrar da sua face?” pensei, desapontado comigo mesmo. Apenas o doce perfume da sua pele se me recorta na mente, “O cheiro dos nossos linguados entranhado no corpo”, recordei numa ponta de desejo. Puro fogo, onde arde um desejo carnal sem rosto. Não permitiria a mim mesmo sentir outro sentimento que não esse. “Recuso amar outra vez”. Finalmente, e sem dar por isso, chego à porta do nº 5.
- São oito euros e trinta e cinco cêntimos - reclamou o velho engelhado, com cabelos cor de cinza, o seu quinhão do vil metal. Puxei de uma nota de 10 e estendi-lha.
- Fique com o troco - disse-lhe, com um sorriso de gozo nos lábios. - É pela simpatia. O taxista, acelerou a fundo e desapareceu numa pressa. Afasto o punho da camisa que me tapa o relógio e vejo as horas. “Nove e vinte. Devia ter ligado” penso, já com o dedo na campainha do 3º esquerdo. Toco e fico a aguardar. O trinco da porta dispara num grito eléctrico. Entro no hall do prédio e carrego no botão de chamada do elevador. Naquele compasso de espera, desejo ter no meu cérebro um mecanismo semelhante, "Um grande botão vermelho que pudesse carregar a meu bel-prazer - On/Off -, a vida seria tão mais simples”. As portas de aço abrem-se e, ao entrar no cubículo revestido a madeira, dou de caras com o meu olhar. O grande espelho que preenche a face frontal do ascensor devolve-me o meu reflexo, mas viro-lhe as costas com desprezível indiferença. Pressinto, no entanto, o juízo com que me observa por cima dos ombros e logo mordo entre dentes um seco “Estás a olhar para onde? Não falo com estranhos.” No curto percurso que me separa do terceiro andar, tento sem sucesso lembrar-me do rosto de Sílvia. Nada. Apenas o seu perfume sensual rodopia na minha mente confusa. Chego finalmente à porta do apartamento. Relutante e sem uma memória à qual me possa agarrar, pouso ao de leve o dedo indicador sobre o interruptor da campainha e fecho os olhos, encerrando-os nas ruas escuras da memória, onde penso ser possível, por vezes, tropeçar na intuição. “Não adianta” pensei resignado ao deixar descair a cabeça para a frente, como um peso morto que tomba sem vontade. Reforço a coragem com um “Que se foda, sem medos” que solto dentro de mim como um incentivo doentio.


sábado, 8 de janeiro de 2011

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Na cama com o Demónio
Parte 2



Encostado à ombreira da porta, detém-se por breves instantes e sonda a penumbra em busca das memórias da noite anterior.
O lençol de luar que entra pela janela do pequeno quarto contíguo, revela, num crescendo demorado, formas esbatidas que mal se deixam perceber; reconhece o tapete de pêlo comprido que quase o atirou ao chão e o quadro de Klimt. Tudo o resto, não é mais que um denso nevoeiro impossível de contornar. Não tem memória de mais nada. “Tal não era a tua sede de carne” conclui com sarcasmo. Avança dois passos para fora do quarto, alcança o interruptor e liga-o. A lâmpada do tecto acende-se num grito estridente que apanha James desprevenido. “Filha da p…” grita em surdina ao virar a cara e erguer a mão direita na tentativa de filtrar o jorro de luz aguda. De olhos cerrados, segue às apalpadelas para a casa de banho, onde alcança por fim, o que pensa ser a extremidade do lavatório; agarra-o com as duas mãos e abre lentamente os olhos ainda doridos. O grande espelho que repousa na parede, devolve-lhe o seu olhar num reflexo baço; James renuncia ao confronto consigo próprio e segue para a banheira; abre a torneira e deixa a água correr por uns segundos. Sem vontade, entra na banheira. O contacto com a água desperta-lhe o corpo num arrepio dilacerante; sente uma corrente de sensações desconexas fragmentar-lhe o raciocínio, toldado por grotescos clarões de puro desejo sexual: a carne quente; o deboche húmido e o doce toque da pele de Sílvia. O duche frio arrefece-lhe as entranhas e as lembranças, começam por fim a reclamar o seu lugar numa cronologia verosímil. De início, tudo se resume a rios de whisky que correm desenfreadamente para o mar dos acontecimentos de Sábado - a noite em que se conheceram. “Passei a noite toda a beber da sua boca” relembra ao colocar a nuca por debaixo do chuveiro. “Sem dúvida o melhor copo de onde alguma vez já bebi”. As memórias dessa noite, fluem livremente sem que consiga oferecer-lhes resistência: lembra-se de trocarem números de telefone à porta do Gasoil; de sentir as elegantes mãos de Sílvia acariciarem-lhe o peito; de a beijar intensamente enquanto subiam a Rua da Madalena; de a deixar dentro de um táxi; de seguir a pé para casa, num passo trôpego e dormente - efeito das doses exageradas de álcool com que regaram a noite -; de cair na cama como uma pedra; de ter dormido todo vestido, enroscado à inconsciência, aquela doce dormência que sempre abraça os desgraçados e os embala num sono torpe. Por um momento, deixa-se ficar ali, de pé, num transe catártico, debaixo da água que cai. Observa as gotas recortarem-lhe o corpo sob a forma de pequenos riachos e, num silêncio ensurdecedor de memórias cruéis feito, pressente uma mágoa pousar-lhe no peito. Uma sujidade escura e tenebrosa que água nenhuma consegue lavar; uma treva pegajosa e lúgubre, que insiste manter-se sombra e luz nenhuma consegue iluminar. Observa o seu corpo nu e sente-se imundo. “Todo eu sou falsidade”, reflecte com repugnância, “tornei-me na máscara que eu próprio criei para me proteger do Mundo e perdi por completo a noção daquilo que sou; daquilo que fui; sem vontade absolutamente nenhuma de viver o que poderá vir a ser. Só o fim me interessa. O grande sono”.
Visualiza sob a forma de rasgos de luz brilhante, os acontecimentos que tornaram possível a sua presença naquela casa; naquele ponto específico da sua vida. James, segue viagem.


segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

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Na cama com o Demónio
Parte 1


Solta em direcção ao tecto a última bafurada do seu Marlboro enquanto observa a cinza incandescente corroer o filtro. O fumo que se solta num cheiro a queimado diz-lhe que é melhor ficar por ali. “Acabou-se”.
Sem vontade, estende a mão e apaga o que resta do cigarro nas paredes do cinzeiro improvisado - uma tigela de barro onde uma mão cheia de beatas flutua num mar de cinza. Na mesinha de cabeceira repousa o copo da noite anterior ainda com uma fina lâmina de vinho tinto. Sem hesitar, vira-o de uma vez só e deixa que o balanço do gole lhe devolva a nuca à almofada. Permanece imóvel, saboreando calmamente aqueles escassos segundos de descanso enquanto sente o sabor acre do “Duas Quintas” lamber-lhe as entranhas. “Mais um copo… mais uma noite desconhecida… mais dois passos no trilho da Perdição. James meu caro, estes doces prazeres são a tua desgraça”. A curta linha de pensamento cessa com uma falsa promessa: “um dia vou parar com tudo isto. Um dia… não hoje”. O cansaço que lhe rasga o corpo transforma num arrastar doloroso o simples movimento de sentar-se na cama. De pés plantados no soalho, enterra os cotovelos nas pernas e apoia a cara inchada entre as mãos. Permanece nesta posição durante um minuto; inerte; dormente. A custo, ergue a cabeça e desprega os olhos mal dormidos, que, desorientados, procuram as horas no pequeno despertador. “Três e vinte e três da manhã e a vontade de estoirar não desaparece” deixa escapar num suspiro dorido. Sente o cheiro a sexo que envolve o quarto e afia um sorriso. Inspira lentamente essa essência quente que logo se instala na líbido e, num arrastar prolongado, roda o corpo para trás. Deitada de barriga para baixo, a mulher de pele branca e cabelos cor de fogo dorme embalada num sono químico. Observa demoradamente o corpo que o recebera e com a ponta dos dedos desliza uma carícia que se estende das coxas às nádegas. “Pobre Andretta, como foste capaz de te entregar a um cão danado como eu…” pergunta sem remorsos ao vazio.
James deixa cair o seu corpo sobre a cama e beija-a no ombro sem recear que acorde. Saboreia-a sem pudor uma vez mais. O desejo carnal logo o deixa de sexo em riste. Trôpego, levanta-se da cama receando não ter forças para resistir a mais um mergulho no quente Triângulo de Vénus, onde Mundos se encontram e Homens se perdem. “Tem calma rapaz, poucas são as coisas que um duche de água fria não resolve” pensa numa falsa resignação ao desligar o pequeno candeeiro que espalha uma luz suave pelo quarto.