Na cama com o Demónio
• Parte 4 •
Enterro o indicador na campainha e ouço, do interior do apartamento, uma voz pedir-me “dois segundos”. Um minuto depois, o trinco da porta solta-se com três voltas barulhentas. Sílvia, enrolada numa toalha carmesim, abre a porta.
“Finalmente, o corpo da memória perdida” penso, enquanto apanho o queixo do chão e procuro nas gavetas do meu léxico, uma simples interjeição que seja. O seu cabelo ruivo, ainda molhado, brilha sob as luzes do hall de entrada; não ouço o som das palavras, mas acompanho todos os movimentos que os seus lábios desenham, ao articular o “olá, estás bem?” que espalha pelo ar. Rendido à sua sensualidade, solto um monossilábico “sim”. De passo firme, entro no apartamento; trocamos um intenso e indeciso jogo de olhares; Sílvia oferece-me a face, mas eu, irredutível, procuro-lhe a boca. Lentamente, avanço o decidido beijo que deixo cair ao de leve nos seus lábios; sinto o seu hálito quente atiçar-me o desejo. Fecha a porta da rua e de costas voltadas para mim diz-me que está cansada, enquanto se encaminha para a sala. Sigo-a com o meu olhar deleitando-me com cada movimento do seu corpo.
- Tomei um banho e vim deitar-me aqui no sofá. Tive um dia para esquecer - desabafa num suspiro, ao ajeitar o nó da toalha que ameaça desfazer-se.
- Sim já tinhas dito ao telefone. Queres falar sobre isso? - pergunto sem grande interesse de olhos fixos na sua coxa destapada.
- Não, hoje não. Já jantaste?
- Bebi dois Martinis depois de ter saído do escritório - confidencio, sem receio do que pense, enquanto dispo o casaco e puxo uma cadeira; por cima da mesa de vidro deixo cair o telemóvel, o Marlboro e a caixa de Club Masters.
- Então estás mal. Só tenho meia garrafa de vinho. Casa de Santar.
- Perfeito - sorri, ao ouvir a palavra «vinho».
- Tens a certeza que não queres que te faça qualquer coisa rápida? - insiste.
- Não obrigado, eu estou bem. Só preciso que me digas onde estão os copos.
- No armário por cima do fogão; a garrafa está ali - diz-me, ao apontar num movimento esforçado para uma pequena mesa que se encontra no canto da sala.
- Sim, eu já a vi.
“Eu só vejo o que me interessa” penso para comigo. Vou à cozinha num pé e volto noutro; sirvo-me e emborco o primeiro de muitos. Sem pestanejar, despejo um atrás do outro até não restar uma gota. O vinho durou um riscar de fósforo; “só estou contente quando já não há nada, quando chega ao fim. Não sei porquê, mas é assim” reflecti, ao ver o último fio escarlate escorrer do interior do copo directamente prá goela. Satisfeito com a calma interior que me adormece o cérebro, abro a caixa das cigarrilhas mas, descontente com o cenário, fecho-a logo de seguida e puxo de um cigarro. “A última Master é para mais logo, fumo-a em paz enquanto a Norton aquece as tripas”. Acendo o Marlboro, dou duas puxadas sôfregas e solto uma espessa bafurada de fumo pelo ar.
- Não te importas que fume pois não? - pergunto, ao guardar a carteira de Quinas no bolso.
- Não, mas abre a janela e sobe os estores até cima.
Enquanto reponho os níveis de nicotina no sangue - que se querem sempre altos - o meu telefone, inesperadamente, toca; admirado, olho para o visor que me mostra o nome de Alexandra. “Tu? O que é que tu queres a esta hora?”. O meu sobrolho franzido de espanto denuncia o meu jogo; Sílvia, percebe que é uma mulher e observa-me em silêncio a estudar a minha recação. Eu, frio como mármore, testo as águas sem desviar o olhar; rejeito a chamada e desligo o telefone.
- É trabalho, não interessa.
- Eu não te perguntei nada. Se não atendes é porque não queres.
“Minha querida, muito me dizes. Não vacilas diante da boca do lobo? Isto promete”, mordi entre dentes ao atirar o caramelo incandescente pela janela. Volto para o meu lugar e chego a cadeira para perto do sofá; conversamos sobre o ontem que precedeu a noite em que nos conhecemos.
- Como foi o meu Domingo? - respondo com a pergunta - Passei o dia a dormir. Apenas saí à noite para beber um café e dar uma volta de mota. Fui até à Boca do Inferno arejar as ideias. Terminada a minha agenda cultural, foi a vez dela falar do seu, bem mais fecundo em banalidades do quotidiano: o almoço com os avós paternos; a visita a casa da mãe e o passeio no jardim da Gulbenkian, com as amigas, que culminou com um lanchinho todo pipoca na pastelaria Mexicana - na Avenida Guerra Junqueiro - onde comeram scones e beberam uma infusãozinha de cidreira toda ela elegante, servida cheia de nove horas em serviços de porcelana chique. Ouvi-a sem interromper, sem atenção e sem o mínimo de interesse por todo aquele mundo de querubins da Lapa imaculados e detestáveis. O que eu queria mesmo, estava debaixo daquela toalha carmesim. “Isso sim, é delicioso e delicado” pensei, ao cerrar os dentes.